Por Reinaldo Azevedo
Na
última edição de VEJA do ano passado, publiquei um artigo tratando dos
aspectos legais do julgamento do mensalão e desmontando a farsa ridícula
de que o STF recorreu a expedientes de exceção para condenar os
mensaleiros. Para
ilustrar o texto, escolhi um quadro de Debret, que retrata um péssimo
hábito no Brasil do século 19: fazer xixi na rua. No 21, há quem
pretenda emporcalhar também as instituições “para o bem do país”.
Naquele tempo, um negro segurava o guarda-sol para os fidalgos
porcalhões. Há muita gente que não se conforma com o fato de que, dois
séculos depois, um negro tenha sido um dos protagonistas de uma
narrativa bem diferente. Queriam-no, ainda, a proteger os mijões.
*
Antes uma realidade quase intangível, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi parar na sala de estar dos brasileiros em 2012. No ano em que Carminha e Nina, da novela Avenida Brasil, embaralharam as noções corriqueiras de Bem e de Mal, os ministros se tornaram porta-vozes dos anseios de milhões de brasileiros justamente por terem sabido o que era o Bem e o que era o Mal. Cumpre notar que os juízes do STF não acharam o direito nas ruas, no alarido dos bares ou nos debates das redações. Decidiram segundo a Constituição, as leis e a jurisprudência da Corte. Personagens como José Dirceu, José Genoíno e João Paulo Cunha se dizem vítimas de um tribunal de exceção e conclamam seus eventuais seguidores a julgar os juízes. Queriam ser tratados como sujeitos excepcionais. A questão é mais ampla do que se percebe à primeira vista.
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Antes uma realidade quase intangível, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi parar na sala de estar dos brasileiros em 2012. No ano em que Carminha e Nina, da novela Avenida Brasil, embaralharam as noções corriqueiras de Bem e de Mal, os ministros se tornaram porta-vozes dos anseios de milhões de brasileiros justamente por terem sabido o que era o Bem e o que era o Mal. Cumpre notar que os juízes do STF não acharam o direito nas ruas, no alarido dos bares ou nos debates das redações. Decidiram segundo a Constituição, as leis e a jurisprudência da Corte. Personagens como José Dirceu, José Genoíno e João Paulo Cunha se dizem vítimas de um tribunal de exceção e conclamam seus eventuais seguidores a julgar os juízes. Queriam ser tratados como sujeitos excepcionais. A questão é mais ampla do que se percebe à primeira vista.
A luta dos
homens por igualdade perante a lei produziu tudo o que sabemos de bom e
de útil nas sociedades; já o discurso da igualdade ao arrepio da lei só
gerou morte e barbárie. Os atores políticos que tomam o mundo mais
justo e tolerante anseiam por um horizonte institucional que
universalize direitos para que emerjam as particularidades. Nas
democracias, porque são iguais, os homens podem, então, ser diferentes.
Nas ditaduras, em nome da igualdade, os poderosos esmagam as
individualidades. Nas tiranias, porque são diferentes, os homens são,
então, obrigados a ser iguais. Uma possibilidade acena para a
pluralidade das sociedades liberais, e a outra, para os regimes de
força, que encontraram no comunismo e no fascismo sua face mais
definida.
O
petismo no poder é fruto do regime democrático, sim, mas o poder no
petismo é herdeiro intelectual do ódio à democracia e da crença de que
um partido conduz e vigia a sociedade, não o contrário. Na
legenda, não são poucos os convictos de que certos homens, em razão de
sua ideologia, de seus compromissos ou de seus feitos, se situam acima
das leis. Eis o substrato das acusações infundadas de que os ministros
do STF desprezaram a jurisprudência da Corte para condená-los. Trata-se
de uma mentira influente até mesmo entre aqueles que, de boa fé, saúdam a
“mudança” do tribunal.
Doses de
ignorância específica e de má fé se juntaram em pencas de textos
sustentando, por exemplo, que, “sem o ato de ofício”, seria impossível
punir um corrupto. Fato! O truque estava no que se entendia por isso. Os
atos de ofício designam o conjunto de competências e atribuições de uma
autoridade, com ou sem documento assinado. O Artigo 317 do Código Penal
— uma lei de 1940 — assim define a corrupção passiva: “Solicitar ou
receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que
fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem
indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. Ora, como poderia
assinar um documento quem ainda nem tomou posse? O voto de um
congressista é um de seus atos de ofício. Se recebeu vantagens indevidas
em razão dele, praticou corrupção passiva. Pouco importa se traiu até o
corruptor.
A questão é
igualmente vital quando se trata da corrupção ativa, um dos crimes
pelos quais foi condenado José Dirceu, definida no Artigo 333 do Código
Penal pela mesma lei de 1940: “Oferecer ou prometer vantagem
indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou
retardar ato de ofício”. Nos dois casos, se o ato for efetivamente praticado, o que se tem é a elevação da pena.
Dirceu e
seus sequazes, no entanto, sustentam que inexistem provas e que ele está
sendo condenado com base numa interpretação falaciosa da chamada
“Teoria do Domínio do Fato”, que busca responsabilizar criminalmente o
mandante, aquele que, embora no domínio do fato criminoso, não deixa
rastro. É evidente que não pode ser aplicada sem provas. E não foi. Há
não uma, mas muitas delas contra Dirceu. Parlamentares disseram em juízo
que os acordos com Delúbio Soares tinham de ser referendados pelo então
ministro; ficaram evidentes suas relações com os bancos BMG e Rural,
como atestam depoimentos da banqueira Kátia Rabello; foi ele um dos
articuladores da reunião, em Lisboa, entre Marcos Valério, um
representante do PTB e dirigentes da Portugal Telecom etc. O Artigo 239
do Código de Processo Penal trata das provas indiciárias:
“Considera-se indício a circunstância conhecida e provada que, tendo
relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de
outra ou outras circunstâncias”.
Não é uma inovação para perseguir Dirceu. A lei é de 1941. Em uma de suas intervenções, o então ministro Ayres Britto esclareceu:
”(…) os fatos referidos pelo Procurador-Geral da República (…) se encontram provados em suas linhas gerais. Eles aconteceram por modo entrelaçado com a maior parte dos réus, conforme atestam depoimentos, inquirições, cheques, laudos, vistorias, inspeções, e-mails, mandados de busca e apreensão, entre outros meios de prova. Prova direta, válida e robustamente produzida em Juízo, sob as garantias do contraditório e da ampla defesa. Prova indireta ou indiciária ou circunstancial, colhida em inquéritos policiais e processos administrativos, porém conectadas com as primeiras em sua materialidade e lógica elementar(…)”.
”(…) os fatos referidos pelo Procurador-Geral da República (…) se encontram provados em suas linhas gerais. Eles aconteceram por modo entrelaçado com a maior parte dos réus, conforme atestam depoimentos, inquirições, cheques, laudos, vistorias, inspeções, e-mails, mandados de busca e apreensão, entre outros meios de prova. Prova direta, válida e robustamente produzida em Juízo, sob as garantias do contraditório e da ampla defesa. Prova indireta ou indiciária ou circunstancial, colhida em inquéritos policiais e processos administrativos, porém conectadas com as primeiras em sua materialidade e lógica elementar(…)”.
A última
falácia dizia respeito à cassação dos mandatos dos deputados condenados
com trânsito em julgado. Corria-se o risco, como se escandalizou o
ministro Gilmar Mendes, de o Brasil ter um deputado encarcerado. Da
combinação dos Artigos 15 e 55 da Constituição com o Artigo 92 do Código
Penal, decidiu o STF que parlamentares condenados em última instância
por crimes contra a administração pública estão automaticamente
cassados. Inovação? Feitiçaria? Juízo excepcional? Não! Apenas a
aplicação dos códigos que regem o país.
A gritaria
que se seguiu à decisão chega a ser ridícula. Eis a redação do Artigo
92 do Código Penal, que cassa o mandato dos deputados mensaleiros,
segundo autoriza a Constituição:
São também efeitos da condenação
1 – a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo:
a) quando aplicada pena privativa de
liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados
com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração
Pública:
b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos.
É trecho
da Lei n° 9268, de 1996, aprovada pela Câmara e pelo Senado. O
Congresso, pois, já decidiu que deputados e senadores condenados em
processos criminais, com trânsito em julgado, têm seus respectivos
mandatos cassados, nas condicões discriminadas acima. Para os crimes de
pequeno potencial ofensivo, a palavra final é das duas Casas. O STF
harmonizou os dispositivos constitucionais e deu eficácia à lei.
Julgamento havido em 1995 tratava de caso muito distinto e, como se
nota, se deu antes da lei de 1996.
Coube ao
decano, Celso de Mello, o voto de desempate, alinhando-se com o relator e
agora presidente da Casa, Joaquim Barbosa, que resistiu a todas as
patrulhas e intimidações de 2007 a esta data: “Não se revela
possível que, em plena vigência do estado democrático de direito,
autoridades qualificadas pela alta posição institucional que ostentam na
estrutura de poder dessa República possam descumprir pura e
simplesmente uma decisão irrecorrível do STF.” O ministro
estava dizendo, por outras palavras, que, nas democracias de direito, é a
igualdade perante a lei que permite aos homens exercer as suas
particularidades; é só nas tiranias que as particularidades de alguns
igualam todos os outros na carência de direitos. Uma fala
oportuna, no momento em que certos “intelectuais” de esquerda e
deslumbrados do miolo mole resolveram defender uma variante dita
“progressista” do “rouba, mas faz”, na suposição de que o desvio ético
seria um preço a pagar pelo avanço social. É espantoso. É o “rouba
porque faz”. Só há um jeito de isso ser considerado aceitável: além dos
cofres, eles precisam ser bem-sucedidos em roubar também as
instituições.
Em nome do povo — isto é, das leis —, o Supremo lhes disse “não”.
Postado pelo Lobo do Mar
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